É cediço que o Estado não possui
condições materiais de assegurar todos os direitos previstos na Constituição e
na legislação esparsa. Diante das novas situações geradoras de problemas,
sobretudo na seara social, tem-se presenciado uma tentativa – normalmente sem
êxito – do Estado, ou melhor, do governo, de normatizar prontamente em atenção
ao clamor público, amenizar as estatísticas e, talvez assim, reconquistar a
confiança nos sistemas político e jurídico.
Abordar a função simbólica do Direito
Penal é transcender a mera eficácia jurídica da norma: é abordar o seu
significado social e político. A questão ultrapassa a insuficiente
concretização jurídica dos diplomas penais e culmina na hipertrofia legislativa
verificada atualmente. A legislação simbólica, penal ou não, tem por escopo a) confirmar valores sociais; b) demonstrar a capacidade de ação do
Estado; e c) adiar a solução de
conflitos sociais através de compromissos dilatórios.[1]
Como confirmação de valores sociais, o
legislador se comporta de maneira a impor a superioridade de certa ideologia ou
posicionamento, fazendo com que sua vitória legislativa prevaleça sobre as
demais teorias, relegando a segundo plano a eficácia normativa da lei.
Caracteriza-se por glorificar ou degradar “um grupo em oposição a outros dentro
da sociedade”.[2]
Já quando age no sentido de demonstrar
(exibir) a capacidade de ação do Estado no tocante à solução dos problemas
sociais (legislação-álibi, como vem
sendo chamada pela doutrina), o Estado está buscando assegurar ou obter
confiança nos seus sistemas jurídico e político. A legislação-álibi aparece
como uma rápida e pronta resposta do governo e do Estado, trazendo uma
sofismática solução aos problemas sociais, ainda que dissimulando a realidade
fática[3]. É
a preferida dos governantes, pois possui poder de introduzir uma sensação de
bem-estar social, amenizando tensões e pondo-se “a serviço das massas” (de
forma aparente, é claro).
Em geral, a complexidade das situações
e a necessidade de normatização mais específica e planejada tornam as mudanças
decorrentes de mera pressão da sociedade uma legislação inócua, ineficaz.
Marcelo Neves alerta que
[...] o emprego abusivo
da legislação-álibi leva à descrença no próprio sistema jurídico, transforma
persistentemente a consciência jurídica; disso resulta que o público se sente
enganado, os atores políticos tornam-se cínicos.[4]
Há também
aqueles casos em que a legislação simbólica serve tão somente como ferramenta
para o Estado adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos
dilatórios: a promulgação de tais diplomas simbólicos apenas transfere a
resolução de conflitos para um futuro incerto.[5]
Como consequência da legislação simbólica,
enfim, constata-se uma inexistência ou irrelevância social dos atos normativos
promulgados pelo Estado, causando, por vezes, efeitos colaterais mais
substanciais do que a própria atenuação dos problemas que careciam de
resolução. Conforme Neves,
[...] além do sentido negativo da legislação
simbólica (de ineficácia normativa e vigência social), ela também se apresenta
em um sentido positivo: produção de efeitos políticos, e não propriamente
jurídicos.[6]
Diante dessa “administrativização do
direito penal” afastou-se a função mínima de tutela dos bens jurídicos
(princípio da intervenção mínima), tornando-se frequente a criminalização de
meras desobediências, fatos que geram perigo abstrato e descumprimento de
processos regulamentadores.[7]
Na visão de Cleber Masson, a função
simbólica é inerente a todas as leis, inclusive a constitucional, não se
restringindo ao âmbito penal. Ela não produz efeitos externos, apenas na mente
do povo e daqueles que estão à frente do governo e
[...]
manifesta-se, comumente, no direito penal do terror, que se verifica com a
inflação legislativa, criando-se exageradamente figuras penais desnecessárias,
ou então com o aumento desproporcional e injustificado das penas para os casos
pontuais (hipertrofia do Direito Penal).[8]
A legislação simbólica tem, em
verdade, do alto de sua retórica, extrapolado limites sociais de contenção do
crime e incidindo em flagrante inocuidade e ineficácia. Leis que não saem do
papel, tampouco são executadas e, quando o são, nada mais fazem do que
superlotar estabelecimentos prisionais e, sobrepondo-se ao “inchaço legal”, trazem
junto o “inchaço” do sistema carcerário.
Por todo o exposto, depreende-se que, apesar do simbolismo contido na
promulgação de novos tipos penais, não há que se negar a possibilidade de um
despertar e uma conscientização dos cidadãos para a relevância do bem jurídico
que se deseja proteger com a nova norma. Entretanto, a simples “criação” de
novos crimes sem um largo estudo social acerca do problema a ser combatido
ocasiona, em regra, a perda da credibilidade no sistema penal, pois além das
constantes violações ao princípio da fragmentariedade, da proporcionalidade e
da exclusiva proteção do bem jurídico, o jurisdicionado não presencia nenhum
resultado prático no seu cotidiano.
Raul Gomes Nunes
[1] NEVES, Marcelo. A constitucionalização
simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. p. 23.
[2] Idem, p. 35.
[3] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15.ed. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 76-77.
[4] NEVES, op. cit. p. 40-41.
[5]
LENZA, op. cit. p. 77.
[6] NEVES, op. cit. p. 42.
[7] CALLEGARI, André Luís; MOTTA,
Cristina Reindolff. Estado e política
criminal: a expansão do Direito Penal como forma simbólica de controle
social. In. CALLEGARI, André Luís (org). Política
Criminal, Estado e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
p. 2.
[8] MASSON, Cleber
Rogério. Direito Penal esquematizado: Parte
Geral. 5.ed. São Paulo: Método, 2011.