quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A FUNÇÃO SIMBÓLICA DO DIREITO PENAL


É cediço que o Estado não possui condições materiais de assegurar todos os direitos previstos na Constituição e na legislação esparsa. Diante das novas situações geradoras de problemas, sobretudo na seara social, tem-se presenciado uma tentativa – normalmente sem êxito – do Estado, ou melhor, do governo, de normatizar prontamente em atenção ao clamor público, amenizar as estatísticas e, talvez assim, reconquistar a confiança nos sistemas político e jurídico.

Abordar a função simbólica do Direito Penal é transcender a mera eficácia jurídica da norma: é abordar o seu significado social e político. A questão ultrapassa a insuficiente concretização jurídica dos diplomas penais e culmina na hipertrofia legislativa verificada atualmente. A legislação simbólica, penal ou não, tem por escopo a) confirmar valores sociais; b) demonstrar a capacidade de ação do Estado; e c) adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios.[1]

Como confirmação de valores sociais, o legislador se comporta de maneira a impor a superioridade de certa ideologia ou posicionamento, fazendo com que sua vitória legislativa prevaleça sobre as demais teorias, relegando a segundo plano a eficácia normativa da lei. Caracteriza-se por glorificar ou degradar “um grupo em oposição a outros dentro da sociedade”.[2]

Já quando age no sentido de demonstrar (exibir) a capacidade de ação do Estado no tocante à solução dos problemas sociais (legislação-álibi, como vem sendo chamada pela doutrina), o Estado está buscando assegurar ou obter confiança nos seus sistemas jurídico e político. A legislação-álibi aparece como uma rápida e pronta resposta do governo e do Estado, trazendo uma sofismática solução aos problemas sociais, ainda que dissimulando a realidade fática[3]. É a preferida dos governantes, pois possui poder de introduzir uma sensação de bem-estar social, amenizando tensões e pondo-se “a serviço das massas” (de forma aparente, é claro).

Em geral, a complexidade das situações e a necessidade de normatização mais específica e planejada tornam as mudanças decorrentes de mera pressão da sociedade uma legislação inócua, ineficaz. Marcelo Neves alerta que

[...] o emprego abusivo da legislação-álibi leva à descrença no próprio sistema jurídico, transforma persistentemente a consciência jurídica; disso resulta que o público se sente enganado, os atores políticos tornam-se cínicos.[4]


Há também aqueles casos em que a legislação simbólica serve tão somente como ferramenta para o Estado adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios: a promulgação de tais diplomas simbólicos apenas transfere a resolução de conflitos para um futuro incerto.[5]

Como consequência da legislação simbólica, enfim, constata-se uma inexistência ou irrelevância social dos atos normativos promulgados pelo Estado, causando, por vezes, efeitos colaterais mais substanciais do que a própria atenuação dos problemas que careciam de resolução. Conforme Neves, 

[...] além do sentido negativo da legislação simbólica (de ineficácia normativa e vigência social), ela também se apresenta em um sentido positivo: produção de efeitos políticos, e não propriamente jurídicos.[6]

Diante dessa “administrativização do direito penal” afastou-se a função mínima de tutela dos bens jurídicos (princípio da intervenção mínima), tornando-se frequente a criminalização de meras desobediências, fatos que geram perigo abstrato e descumprimento de processos regulamentadores.[7]

Na visão de Cleber Masson, a função simbólica é inerente a todas as leis, inclusive a constitucional, não se restringindo ao âmbito penal. Ela não produz efeitos externos, apenas na mente do povo e daqueles que estão à frente do governo e 

[...] manifesta-se, comumente, no direito penal do terror, que se verifica com a inflação legislativa, criando-se exageradamente figuras penais desnecessárias, ou então com o aumento desproporcional e injustificado das penas para os casos pontuais (hipertrofia do Direito Penal).[8]

A legislação simbólica tem, em verdade, do alto de sua retórica, extrapolado limites sociais de contenção do crime e incidindo em flagrante inocuidade e ineficácia. Leis que não saem do papel, tampouco são executadas e, quando o são, nada mais fazem do que superlotar estabelecimentos prisionais e, sobrepondo-se ao “inchaço legal”, trazem junto o “inchaço” do sistema carcerário.

Por todo o exposto, depreende-se que, apesar do simbolismo contido na promulgação de novos tipos penais, não há que se negar a possibilidade de um despertar e uma conscientização dos cidadãos para a relevância do bem jurídico que se deseja proteger com a nova norma. Entretanto, a simples “criação” de novos crimes sem um largo estudo social acerca do problema a ser combatido ocasiona, em regra, a perda da credibilidade no sistema penal, pois além das constantes violações ao princípio da fragmentariedade, da proporcionalidade e da exclusiva proteção do bem jurídico, o jurisdicionado não presencia nenhum resultado prático no seu cotidiano.


Raul Gomes Nunes


[1] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. p. 23.
[2] Idem, p. 35.
[3] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 76-77.
[4] NEVES, op. cit. p. 40-41.
[5] LENZA, op. cit. p. 77.
[6] NEVES, op. cit. p. 42.
[7] CALLEGARI, André Luís; MOTTA, Cristina Reindolff. Estado e política criminal: a expansão do Direito Penal como forma simbólica de controle social. In. CALLEGARI, André Luís (org). Política Criminal, Estado e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 2.
[8] MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal esquematizado: Parte Geral. 5.ed. São Paulo: Método, 2011.

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